O Jeca contra o tubarão
Jornal Movimento 5/4/76“Viram o Tubarão?
Me dá vontade de dar um soco nos beiços do bonecão quando ele aparece com aqueles dentão na tela. Por que nós não fizemos para o dinheiro ficar aqui mesmo?”
Os críticos de cinema dizem que ele é o representante do clássico provincialismo paulista; que ele é um tipo social mais antigo do que muitos que, antes dele, fizeram sucesso no gênero caipira, como Genésio Arruda dos anos 30 e mesmo Nhô Anastácio do início do século; que ele é em Chaplin brasileiro que manipula o arquiconhecido, que ele tem o dom de… e por aí afora.
Sempre caminhando com o cotovelo levantado na altura dos ombros. Amácio Mazzaropi é recorde de bilheteria do cinema brasileiro desde a década de 50. É hoje, aos 58 anos, um homem que não depende mais do cinema para viver: tem um estúdio cinematográfico, uma companhia distribuidora e é o produtor, diretor e ator dos seus filmes – o último, O Jeca Contra o Capeta, estreou na primeira semana de março, num circuito de 13 cinemas na capital de São Paulo.
É um “self-made” Jeca.
O Jeca contra o Capeta é a estória de um caipira (Mazzaropi) envolvido na trama maldosa de uma fazendeira numa cidadezinha do interior tipicamente brasileira. O filho do caipira é acusado de homicídio na comarca, mas no final tudo fica esclarecido: era chantagem da fazendeira. Foi ela quem matou e fez a denúncia à polícia porque, apaixonada por Mazzaropi, tentava forçá-lo a se casar com ela. E no desenrolar do filme a fazendeira se transforma em capeta, há cenas de padres lutando com cowboys americanos, uma enquete popular sobre o divórcio e até Jesus Cristo aparece conversando com o caipira. O mesmo Cristo que no fim se despede da cidadezinha como caroneiro num carro de hippies…
Enquanto o Jeca briga com o diabo nas telas dos cinemas paulistas, Charles Bronson e outras fitas estrangeiras terão que esperar a vez com muita “humildade”, diz Mazzaropi, sorridente e às vezes debochado: “porque eu mesmo não esperava tanto sucesso com O Jeca contra o Capeta”.
A razão desse sucesso? Isso, Mazzaropi e o público que foi assistir seu filme no Cine Art Palácio, no Centro de São Pauto, tentam explicar neste depoimento.
“Ninguém pode obrigar a alguém ouvir Beethoven se ele gosta de Tonico e Tinoco. Não adianta pagar caro um fino bailarino estrangeiro, bem maricas no palco, que o povo larga pedrada em cima dele. O povo quer ir no cinema para rir e chorar. Para ele tanto faz o drama e a comédia. Fiz o filme, Portugal Minha Saudade, era um drama desgraçado e foi a maior renda do ano em 74. No ano seguinte, fiz Jeca Macumbeiro que ainda não está distribuído em todo o Brasil, mas já está com Cr$ 12 milhões, embora muita gente fale que o sucesso foi devido a apelação da macumba, que não é pelo mérito do meu trabalho.
Está bem. Então eu fiz este ano o Jeca Contra o Capeta achando que nunca mais atingiria rendas tão altas como as outras. Mas tive outra agradável surpresa: um milhão de pessoas já viram a fita que está na quinta semana do circuito Serrador em São Paulo. É uma barbaridade.
(Mazzaropi não atinge a classe A, mas a B e a C. Tenho certeza porque sou fiscal, empregado dele, encarregado de evitar roubalheira nas bilheterias. Tenho muita experiência e posso afirmar: existe um tipo de orgulho besta nesta história. A maioria do povo assiste Mazzaropi no centro e deixa de ver ele no bairro. Porque lá no bairro, eles ficam com vergonha de entrar no cinema e o vizinho ver. Existe este tipo de orgulho besta. Acir Camargo)
Falo a linguagem do povo porque sou caipira igual. O público gosta de bastante sinceridade na representação.
Você vê alguém na rua e olha na cara dele. Cê entende pelo olhar. Quem é bom não precisa de esforço: você fala “abóbora” e o público entende sacanagem. E todos vão rir. Eu convivi muito com o povo. Sou um caipira. E São Paulo é uma cidade de caipiras. Tem dois tipos: o estilo Jeca Tatu e o homem que fala como todo o paulista, que tem aos montões por aí. Tem gente que vai na França e depois passa a vida inteira falando na torre “na torre do enfia” eles dizem.
Esse cara também é um caipira, um caipira do dinheiro. Tem outro caipira. O homem do interior para ver o prédio do Banco do Estado e fica dizendo: ai meu deus do céu, essa geringonça vai desabar na minha cabeça. É o caipirão.
Tem também outra faixa de caipira, que é a faixa dos metidos, dos sofisticados, dos metidos a bom, daqueles que querem impor o que pensam.
Para esses eu digo que o gênero humano é todo igual, que não adianta querer imposições e que eu estou cansado de ver muito advogado esnobe andando com o Tio Patinhas no bolso e depois querendo meter bronca.
(O jeito dele andar me deixa gamada. Cristo é maravilhoso no filme. Os padres brigando em plena época que se fala mal de macumba, que beleza. Os cachorros debaixo da cama da mulher dele, tudo tão ótimo para a opinião de uma funcionária pública como eu pelo menos. E o senhor o que acha? Leonandra Fonseca e Dulce Fonseca, minha filha).
Sempre me preocupei com o caboclo, o caipira, que foi mudando seu temperamento, na medida que a sociedade entrava na onda do desenvolvimento. Antigamente eu contava uma história ingênua e todos gostavam. Eu dizia que queria casar com uma namorada mas o pai dela não queria deixar. Depois eu falava que ia dar um tiro no meu ouvido e outro no dela, para nós dois juntinhos nos unirmos no céu e era o maior sucesso. Hoje o povo dá gaitada disto, acha ridículo. Eles estão com a tv em casa e não querem mais saber de riscar o dedão no chão como faziam antes.
Meu primeiro emprego, na década de 30, foi como ajudante de um faquir chamado Ferris, em São Paulo, no Bexiga.
(Mazzaropi é bom da gente ver de tarde para dar gargalhada e matar o trabalho, aproveitando o seguro do Ienepeesse porque eu quebrei esse braço. Ouvisse aquilo que o Jeca disse ao delegado do filme? (‘Seu delegado é a favor do divórcio, é? Então prepara um cafezinho que eu hoje vou lá na sua casa pedir sua mulher em casamento.’) Mazzaropi é assim, ele diz tudo o que a gente gostaria de dizer. Adalberto Vieira, 23 anos, pedreiro)
Eu havia saído de casa aos 14 anos, contra a vontade dos meus pais e como era menor de idade, o Ferris me conseguiu um documento falso para poder dizer as besteiras que o povo gostava de ouvir. Com 19 anos garantido em documentos falsos, eu contava as anedotas e mostrava a espada do faquir para o público ver que ela cortava mesmo. E com o faquir deitando na espada, comendo copos, fomos viajando seguindo o caminho da Central do Brasil. Até o dia que mamãe decidiu me acompanhar nas viagens porque sou filho único. Papai veio conosco, e montamos uma troupe (teatro ambulante). A troupe eram shows de variedade, com declamações, cantos sertanejos e anedotas. Era uma verdadeira loucura na época. Vivíamos viajando como ciganos levando cenários e todos equipamentos juntos, numa espécie de revistinha bem simples. Naquele tempo, várias companhias viajavam dessa forma, sempre se apresentando nos cinemas, após a exibição da fita em cartaz. Mas esse tipo de teatro popular, entrou em decadência no Brasil quando surgiu o cinemascope, porque a tela grande do cinemascope não dava para remover da sala de exibição na hora da gente se apresentar. Resultado: deixavam de nos contratar.
(Até mudo o Mazzaropi é legal. O jeito dele, andando com os cotovelos que parecem um passarinho que quer subir no mundo voando, é legal. Faubert Lemos, 21 anos, estudante no Campo Limpo Paulista.)
A Companhia Sara Bernardes adotara um método ainda original, erguendo eles mesmos os pavilhões dos espetáculos. Fizemos igual. Na cidade de Jundiaí, construi meu primeiro Pavilhão Mazzaropi, que era o que se chamava de Teatro de Emergência.
Apresentávamos peças de teatro em quatro ou cinco atos e depois eu fazia o caipira. Quando a gente chegava na cidade o povo fazia festa e o prefeito jamais criava alguma dificuldade como acontece hoje como os cirquinhos que levam diversão de cidade em cidade. O teatro era facilmente desmontável. Ficávamos uma média de oito dias em cada lugar e seguíamos em diante. E êta povinho que gostava de teatro e anedotas. Uma mulher com o vestido como esses de hoje fazia o maior sucesso naquele tempo, lotava de gente para ver e hoje e elas andam com tudo de fora e ninguém liga. Nosso pavilhão tinha 20 atores e o melhor deles era mamãe. E o povo ria e chorava como acontece até hoje.
(Eu chorava quando via os filmes do Mazzaropi. Principalmente nas matinês dominicais dos cinemas de bairros de Porto Alegre onde a gente trocava gibi e namorava as meninas nos intervalos. O Mazzaropi faz tempo que não vejo. Não sei se me emocionaria de novo vendo os filmes dele. Eu me lembro que eu chorava e ficava triste quando ele tocava violão e cantava para a lua. Omar de Barros Filho, jornalista).
Nos primeiros anos da década de 40 recebi um convite do empresário Miguel Gioso, que normalmente contratava só companhias estrangeiras, para me apresentar no Teatro Santana, aqui em São Paulo, coisa muito fina, camarotes aveludados, a platéia exibia jóias, as madames de frescura, o chofer descendo prá abrir a porta do carro delas. Até uma companhia, das estrangeiras, terminou os espetáculos antes do tempo e Miguel Gioso continuou pagando uma orquestra refinada que fazia parte do show dessa companhia.
Como Gioso havia me contratado, ele quis aproveitar a orquestra luxuosa, já que estava pagando, para reforçar a minha apresentação.
Mas não deu certo. O meu povo estava acostumado a me ver bem simples acompanhado por uma banda de tambor, banjos e outros instrumentos populares e não aquela luxúria toda, com piano, violinos. Foi um negócio inédito e que não deu em nada, o povo até se irritou com aquilo. Aí eu mandei embora a orquestra fina e mudamos para um teatro no bairro ltaim. Foi meu primeiro sucesso em São Paulo.
(Gosto do Mazzaropi porque ele é contra o divórcio e a favor da pobreza. Aonde já se viu isso. Também sou do contra. Já tiraram tanta coisa da gente, agora só falta tirar o nosso marido também com esse tal de divórcio. Meu nome é Maria Josefina, doméstica e bem casada no bairro Itaim Bibi).
Quando meu pai adoeceu, fiquei parado seis meses e reapareci no Rio, no mesmo teatro onde atuava os mais famosos artistas do Brasil, – Beatriz Costa e Oscarito. – o teatro João Caetano. Cheguei lá muito desprestigiado, isto jamais vou esquecer.
Dei uma entrevista para um jornal, mandaram fazer fotografia grande isso tudo, marquei para estrear no dia seguinte no lugar do Oscarito que não queria renovar contrato. Mas no dia seguinte, alguém veio e me disse que o Oscarito já tinha acertado com a empresa e fiquei muito magoado.
Meu próximo emprego foi no “Ato Variado” da companhia de Nilo Nello. Eu cantava cançonetas napolitanas e não podia usar o microfone. Quem usasse o microfone era vaiado, tinha que ser na raça. nada de auxílio da Light, isso de eletricidade. Logo estava contratado pela Rádio Tupi, para um programa de um quarto de hora, no horário das 19h45 min., eu ficava conversando com os caipiras da cidade, com a grande população paulista. Engraçadíssimo. São Paulo inteiro ouvia, orelha grudada no rádio.
(Mazzaropi atinge o arcaico da sociedade brasileira e de cada em de nós. Um inverso da redundância. Ele é estimulante quando repete e se repete incansavelmente e sem nos cansar. De tanto repetir, de repente, uma inesperada poesia. Sucede quando ele não está fazendo nada de especial, apenas olhando, andando ou pondo o fumo no pito. Mas, influenciado pelos seus cineastas, Mazzaropi os deixa fazer o cinema ruim dos bailes de carnaval ou de luta generalizada, no erotismo e na ação. São os momentos do filme em que os espectadores aproveitam para conversar e criticar. De um artigo de Paulo Emilio Salles Gomes, crítico de cinema).
Na inauguração dos 50 mil quilowates da Tupi, eu tinha projeção limitada, havia o primeiro time do rádio e não sei se eu era o décimo ou se estava fora do time. Convidado, fui novamente para o Rio de Janeiro como um cachorro que sacode o rabo para todo mundo. Ninguém me dava bola, fui ignorado no aeroporto. Aquilo me abalou bastante, fiquei chateado e me atacou o fígado. Cheguei no hotel nervoso, porque tinha um baita compromisso, afinal, era uma apresentação de gala. Não sei como, no palco eu lembrei de todas as piadas decoradas, aquelas histórias que fazem o público rir nem que não queira. Daí, tinha cara na primeira fila que levantava os pés até lá em cima e batia no assoalho, dando gargalhadas. Para mim, foi felicidade, porque eu estava na pior. Em 25 minutos terminei o show e sai rápido do palco. 0 teatro veio abaixo.
Caminhei ligeiro para me fazer de bobo. Comecei a tirar a roupa no camarim e ouvia o grito do pessoal pedindo para eu voltar. Aí um cara veio e pediu, não faço isso, não seja anti-profissional. Então descobri que não era mais eu que abanava o rabo, de repente, eram os outros que abanavam o rabo para mim. Ainda no camarim veio um telefonema da Rádio Nacional do Rio me oferecendo um contrato. Tempo da Emilinha Borba, da Revista do Rádio, o Rio de Janeiro inteiro e o Brasil todo ouvia esta rádio que queria me contratar. Depois, em 53, veio a tevê me convidar.
(Sou mecânico, Jorge Miranda, 52 anos, sampaulino futebol clube, curtido de Nelson Gonçalves, saudoso dos trens Maria Fumaça, que acha Kung Fu uma besteira, mas formidável o Inferno na Torre, e que tem a dizer que Mazzaropi e Oscarito são os maiorais e que às vezes a gente sente uma tristeza danada e depois de ver o Mazzaropi todo caipirado se acaba a tristeza todinha).
Mais tarde fiz o meu primeiro teste na Vera Cruz para estrear no cinema com o filme Sai da Frente que teve boa aceitação porque eu levei todo o meu público de rádio e televisão para o cinema. Na década de 50 fiz revista com a Dercy Gonçalves, no Teatro Odeon, na Consolação, e as fitas Candinho. Nadando em Dinheiro, O Gato de Madame e outras do gênero caipira. A partir do Chofer de Praça decidi eu mesmo fazer a direção de minhas fitas porque os diretores queriam transformar o meu personagem num caipira sueco, sofisticado, diferente na linguagem, nas roupas e no comportamento do brasileiro.
Disse e repito: tenho uma situação excepcional dentro do cinema brasileiro. Vejo isso pelo volume de fitas. A Pam Filmes, companhia distribuidora que é minha, tem filial no Rio de Janeiro, tem sede própria em Belo Horizonte, em Curitiba, Recife, Porto Alegre, e a matriz aqui em São Pauto onde trabalham 80 pessoas. Estou inclusive adiantado em relação ao governo brasileiro, que pretende fazer um estúdio entre São Paulo e Rio.
(Assisti todos os filmes do Mazza. Meu nome é jornaleiro Nelson Gomes da Silva e acho a vida de São Paulo constrangedora. Mas o Mazza transmite um pouco de suavidade. Gostei do Cristo dele porque eu acredito que a pessoa tem que ser boa na terra para atingir a segunda eternidade).
Atualmente estamos construindo um novo estúdio, num terreno de 200 mil metros quadrados na cidade de Taubaté, com 20 apartamentos luxuosos, restaurantes, piscinas, lagos. E não devo nada a ninguém.
Muita gente faz cinema no Brasil para consumo próprio e não percebe que não faz sucesso porque vive divorciada do povo, falam uma linguagem intelectual e o povo não gosta de pensar. Analisem bem o Tubarão, os americanos fazem e levam o dinheiro daqui. Me dá uma vontade de dar um soco nos beiços daquele bonecão quando ele aparece com aqueles dentão na tela. Porque nós não fizemos para o dinheiro ficar aqui mesmo?