O Jeca ainda ronda a cultura
O Estado de S. Paulo, Caderno 2, quinta-feira, 13 de junho de 1991.Hamilton dos Santos
A obra de Mazzaropi ainda é capaz de entreter o público e de se apresentar como problema cultural para a crítica. Oito dos 24 filmes que ele produziu e estreou estão disponíveis em vídeo. Os filmes não foram feitos para fazer pensar, mas para divertir. Diz-se que Mazzaropi é o protótipo do cinema que dá certo no Brasil. É verdade. Muito antes de Trapalhões, Xuxa, Sérgio Malandro e Faustão ele sabia que ele próprio, como constatado por Paulo Emilio Salles Gomes, era o melhor de seus filmes. Sabia também que manter o melhor em todas as cenas era levar à exaustão uma verdade que poderia cansar. Daí, convidava as estrelas do momento (Agnaldo RayoI, Tony e Cely Campello etc. etc.) para rachar com eles a responsabilidade de entreter o público.
Os filmes de Mazzaropi são simples e grotescos. Uma razão aceitável para que a crítica os tenha desprezado. Outra razão para isso, vem de Habermas. O filósofo da ação comunicativa duvida da capacidade prospectiva das Ciências Sociais de onde os críticos tiram sua munição. Habermas fala tanto da incapacidade de diagnóstico quanto da dificuldade de se analisar acertadamente fenômenos enquanto eles acontecem. Assim, o comportamento crítico em relação a Mazzaropi é muito semelhante ao comportamento da crítica em relação a seus seguidores: Xuxa, Trapalhões, etc. A dúvida é se esses seguidores “dez anos depois” ainda conseguirão divertir e se colocar como problema cultural.
Agora, em vídeo ou em retrospectivas nos cinemas. Mazzaropi ainda surpreende. Sabe-se que, antes de tudo, ele foi um empreendedor que não deixou escapar as oportunidades que o mercado lhe proporcionou. O seu lado empresarial lhe valeu o rótulo de homem de direita. Aí o paradoxo: o Jeca Tatu (criado em 1919 por Monteiro Lobato) que Mazzaropi personificou, visto hoje, é um comunista jocoso, mas sem disfarce. Na maioria dos filmes, há o maniqueísmo explícito e cristão de sempre: de um lado o bem, do outro o mal.
Mas o estereótipo político dos personagens é muito claro e vai além da sugestão. O problema da terra sempre se coloca. Jeca não assume sua preguiça como faz o Macunaíma de Mário de Andrade. “Estou muito ocupado”, “Estou cansado”, “Trabalhei o dia todo”, diz o personagem na maioria dos filmes. É mentira. Ele não trabalha. Seus problemas de moradia, de alimentação etc. são sempre resolvidos pela comunidade. Por isso, ele defende inconscientemente o comunismo, mas ao mesmo tempo, aparece também como o protótipo do Ievar vantagem”. Sua ética não passa pelo individuaIismo iluminista, mas pela ética das pólis, da comunidade. Os vilões de seus filmes são os mesmos apontados pela esquerda brasileira: latifundiários e empresários urbanos inescrupulosos, políticos oportunistas e mentirosos etc. etc. Certas cenas de Tristeza do Jeca (1961) ou de Jeca Tatu (1959) nada ficam devendo ao documentário Cabra Marcado para Morrer, de Eduardo Coutinho. A diferença entre o Jeca de Mazzaropi e a esquerda do Brasil é que esta receita o Estado forte para vencer aqueles vilões. Jeca, comunista primitivo e de instinto, deixava a tarefa para Deus. Sinuoso, o lado comunista do Jeca equivale ao lado jeca de certa esquerda.
O Brás Cubas de Machado de Assis intuiu muito cedo que o “Ieitor” (público) prefere a anedota à reflexão. O cinema brasileiro que “dá certo” confirma a tese. Mas como a piada é quase sempre a mesma (veja os filmes de Mazzaropi), a repetição acaba fecundando paradoxos estranhos e engraçados como a constatação de que até o Jeca foi capaz de deixar perplexas esquerda e direita.