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Jeca, o Descolonizador

Jornal do Brasil, caderno B; p. 2; 3 de agosto de 1978.

Os que se preocupam 365 dias por ano, em horário integral, com a colonização cultural, deveriam ver Jeca e Seu Filho Preto, misturando-se com o povão, em vez de ficar teorizando em gabinetes ou nos saraus da alta burguesia. Está aí, mais uma vez, o chamado fenômeno Mazzaropi, um dos poucos homens de cinema do mundo que continuaria milionário ainda que seus produtos fossem boicotados pelos exibidores fora das fronteiras de sua metrópole comercial. De São Paulo, as produções do Sr. Amácio Mazzaropi partem invencíveis para todas as regiões do país – do Oiapoque ao Chuí, poderiam proclamar os mais nacionalistas, se o cinematógrafo estivesse implantado nessas referências geográficas.

Nas muitas vezes abstrata entidade conhecida como reserva de mercado os filmes de Mazzaropi ocupam espaços concretos: não apenas datas, mas poltronas – que não permanecem vazias (como ocorreu esta semana, com outro nacional, do tipo sério, Cristais de Sangue, em pelo menos uma sessão cancelada por falta de espectadores). Comercialmente, tudo bem. Esses encontros imediatos do terceiro grau com formas de vida primariamente inteligente – ou com a contrafação do polêmico Jeca Tatu de Monteiro Lobato – proporcionam vistosas estatísticas à Embrafilme e são interessantíssimos para os que pensam a nação sob o prisma de balança de pagamentos. Ufanam-se os nacionalistas fisiológicos. E com motivos: aptos a ocupar grandes circuitos com ou sem medidas protecionistas (e Mazzaropi não custa um centavo ao Erário) os filmes mazzaropianos mantém a distância um bom número de produções de notórios colonizadores culturais, como os Estados Unidos, a Itália, a França, ou de alienígenas menos assíduos, como os suecos, os japoneses, os espanhóis etc.

Mazzaropi já foi defendido até por críticos de respeitável gabarito intelectual. No entanto, o vernáculo padece de incompreensível lacuna: faltam estudos sobre a significação desse arauto da descolonização cultural. Onde estão os simpósios, ensaios, mesas-redondas e retrospectivas capazes de garimpar e expor aos integrantes dos conselhos oficiais de cultura e das academias de imortais as preciosidades do universo mazzaropiano? A obra de Amácio Mazzaropi é ampla e nenhuma unidade se perdeu em incêndios ou sob o efeito de deterioração. Alguns títulos constituem provocantes convites à reflexão: Jeca Contra o Capeta; Uma Pistola Para Djeca; O Jeca e a Freira; Betão Ronca Ferro; O Jeca Macumbeiro; Jeca… Um Fofoqueiro no Céu; Um Caipira em Bariloche.

Mas não é fácil, para cinéfilos, suportar os 100 minutos de projeção de Jeca e Seu Filho Preto. Bem-aventurados os generosos, os de riso fácil, que vemos e ouvimos na sala escura. Mas ao crítico cabe somente registrar o fenômeno de receptividade ininterrupta, constatar que – embora sem a força histriônica de um Oscarito – há alguém que não deixa morrer a tradição da chanchada. Afinal de contas, não temos muitas tradições a perder entre as crises de memória nacional, no setor do cinema.

Permanece a pseudo-autenticidade, o caipirismo de programa radiofônico ilustrado em imagens coloridas. Jeca e Seu Filho Preto apresenta nível mais razoável que a maioria das produções de Mazzaropi: certamente pelo esforço de Pio Zamuner (bom fotógrafo promovido a diretor) há mais fluência no relato, composição visual rotineira, mas demonstrando capricho em várias ocasiões, além de orientação menos primária do elenco. Não seria possível esperar um padrão atualizado de narrativa cinematográfica, pois o próprio estilo do ator-produtor pede respeito ao anacronismo. A história caminha para um final previsível, com julgamento e condenação do mau coronel e tranquilidade para a vida do jeca, seus amigos e família. Uma pitada de anti-racismo, alguns números musicais, sentimentalismo, a decantada sabedoria popular (Deus tarda, mas não falha) e piadas fracas, às vezes temperadas com um grão de malícia inofensiva, à moda dos antigos almanaques de farmácia.

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