Jeca-Mazzaropi, uma síntese de culturas
Folha de São Paulo, Ilustrada, p 30, 19 de junho de 1981.Miroel Silveira
Nos fins do século passado e nos começos deste, defrontaram-se na vida e nas artes duas culturas que o tempo aqui reunira: a italiana dos recém-emigrados, e a dos caboclos que também emigravam do ciclo roceiro para se instalarem na grande urbs paulistana que nem Anchieta nem Nóbrega desejariam ter fundado.
Vinham os italianos com o rancor de suas injustiças sociais, com a miséria de suas terras dominadas pelos grão-senhores, em busca de uma felicidade material e espiritual inspirada pelos ideais generosos do “Rissorgimento” e da “Giovanne Italia”. Em sua vivência cotidiana, a música e o teatro que os “filodrammattici” desenvolveriam a tal ponto que, ao redor de 1900, tínhamos 70 grupos de amadores religiosamente encenando espetáculos todos os fins de semana nos bairros que começavam a alargar-se – Brás, Barra Funda, Bixiga, Mooca,Cambuci, Bom Retiro, Água Branca, Luz e Campos Elísios. E de suas fazendas vinham, com as estradas de ferro e as primeiras facilidades das comunicações, as famílias que haviam desbravado o sertão para o segundo surto cafeeiro (baixa Mojiana e baixa Paulista). Como exemplificou Paula Beiguelmann, os do primeiro surto (vale do Paraíba) para aqui já tinham vindo (quando puderam) e os do terceiro surto viriam depois (média e alta Mogiana, média e alta Paulista, e média e alta Sorocabana).
Tanto o êxodo da pátria italiana quanto o êxodo da pátria cabocla provocaram as expressões artísticas que, na linha de comicidade, se cristalizariam mais tarde na figura do Jeca-Mazzaropi.
A nostalgia da terra longínqua exacerbava a defesa dos valores da “italianitá” nos serões de fins de semana, nos teatrinhos de bairro dos filodramáticos. E a nostalgia da natureza selvagem, trocada pelas comodidades urbanas, pedia uma literatura evocativa e descritiva, tal como a fizeram Valdomiro Silveira e Amadeu Amaral em São Paulo, e Afonso Arinos em Minas. Nelas, a figura do caboclo é sempre rica de humanidade, sensível e terna, com raros traços alegres. Viria depois Lobato, doente de sua megalomania progressista, apontando o dedo acusador para o pobre Jeca desnutrido e lombrigoso, responsabilizando-o pelas “cidades mortas” de Oblivion. Mais tarde se arrependeria e faria comovente mea-culpa, capitalizada em seguida pela Indústria Farmacêutica Fontoura para maior venda de seus produtos.
Da literatura passariam rapidamente para o teatro essas personagens, nas criações de Arlindo Leal, Brício Filho, Joaquim Morse, João Pinho, Cesário Mota, José Piza (parceiro de Artur Azevedo na “Capital Federal”). Belmiro Braga e muitos mais, sendo que nessa primeira passagem ainda não se caracterizariam as figuras do caipira como caricaturais, embora já com acentuados traços cômicos. Foi só depois que Cornélio Pires sublinhou com predominância esses aspectos piadísticos do Jeca, que a personagem assumiria, também (e principalmente) no palco, um tonus grotesco.
Essa evidência cômica, embora lastimável quanto ao esvaziamento da figura humana do caboclo, gerou teatralmente uma energia criadora vigorosamente expressiva em São Paulo, onde o fenômeno histórico-sociológico da defrontação cultural acontecia. De mera consumidora dos produtos encenados na capital federal (e muitas vezes em Lisboa), principiou São Paulo nas duas primeiras décadas do século a estabelecer vida teatral própria, basicamente em torno e tendo como tema central os tipos do emigrante italiano e do caipira paulista. Dois atores se notabilizaram, por essa época, no desenho cênico da dupla caricatura: Vicente Felício e Sebastião Arruda. Este fundou companhia própria, a Companhia Arruda, e Vicente Felício o acompanhou praticamente durante toda a sua carreira nesse período, tendo a ele sobrevivido em fases posteriores.
A Companhia Arruda – para se ter uma pequena idéia do sucesso que alcançou e do repertório que a animava – instalou-se primeiro no Teatro São Pedro (e depois no Colombo), atuando ininterruptamente de 3 de agosto de 1917 a 4 de março de 1919, destacando-se entre seus maiores êxitos “São Paulo Futuro” e “Uma Festa na Freguesia do Ó” de Danton Vampré (música do Ten. Lorena), “Ribeirão Preto por dentro” de Amilcar Siqueira (música de Carlos Carvalho), “Manduca Cerimônias” de José Piza, “A Candinha”, burleta de Moreira Sampaio parodiando “A Traviata”, “O Picareta”, burleta de Euclides de Andrade (cujo pseudônimo era Epandro) com música de Carlos Sottomayor, “Sustenta a Nota”, revista de Danton Vampré, Euclides de Andrade e Juó Benanère com músicas de Frederico Cotó, Tenente Lorena, Leôncio Alves da Silva e Carlos Paiva.
O clima dessas revistas, em que também se defrontavam as figuras do italiano em sua primeira luta, e a do caipira em seus primórdios urbanos, fica mais claramente retratada se focalizarmos alguns pequenos diálogos de Arlindo Leal em “O Boato”, por exemplo, quando o primeiro, tendo como função vender bilhetes de loteria, irrompe anunciando o produto na gíria do momento, que rememorava Canudos:
Bilheteiro – Jagunzos e conselhéri… A seis mi ré o conselhéri… jagunzo a 300 ré.
Anástacio – Hom’essa! O Conseiêro por seis mirréi!… Que coisa é essa?
Bilheteiro – Quinhentos conto é a victoria. Quére uno jagunzo?
Anástacio – E o retrato que mecê tá vendendo, moço?… Quero vê o Conseiêro… quero conhecê a cára desse tinhoso. (aparte) Quem havera de dizê que o Conseiêro virou biête!…
Sebastião Arruda e Vicente Felício, dentro desse repertório, que abrange uma quase centena de revistas, burletas e comédias, criaram os paradigmas populares do caipira e do “carcamano”. Nenhum deles, apesar da comicidade ir progressivamente recorrendo a exageros, costumava usar maquilagem carregada, beirando à caricatura. Eram tipos substantivos. Seus continuadores e sucessores, respectivamente Genésio Arruda (aproveitando o mesmo sobrenome) e Nino Nello, deles guardaram as características centrais, levando-as por vezes a excessos (principalmente Genésio Arruda). Este, utilizando seu queixo curto, seu físico minguado, levou a paródia do caipira às últimas consequências, num esvaziamento de sua complexidade psicológica e social. Uma caricatura por vezes brilhante, mas sempre caricatura. Nino Nello, provindo do movimento filodramático juntamente com seu irmão Alfredo Vianello (marido da atriz Lyson Gaster, uma das grandes rainhas do mambembe nacional até a década de 50), das raízes italianas conseguira condensar valores mais substanciais, hauridos na fonte da “Comédia dell’Arte” e do “macchiettismo”, ou seja, habilidade de criar personagens extravagantes e curiosos, que deliciavam Marinetti e os futuristas.
Mazzaropi, de ascendência cultural italiana por um lado, e por outro cabocla valparaibana, no início de sua carreira teve a oportunidade de trabalhar com os dois: com o caipira Genésio Arruda (o da “Bandinha”, e do teatro “gênero livre” do Teatro Santa Helena), e também com Nino Nello, que durante um período de vinte anos (35 a 55 aproximadamente) centralizou a atividade do teatro popular em São Paulo, mantendo quatro pavilhões circulando pelos bairros com um repertório ítalo-paulista, do qual o Grão-Mogol era a comédia do irmão de Abílio Pereira de Almeida, João Pereira de Almeida, Filho de sapateiro, sapateiro deve ser.
Essa convivência cênica deve ter facilitado a síntese que em Mazzaropi se realizou, a de italiano “devorado” pelo caipirismo, precisamente o que Antonio de Alcântara Machado havia destacado na dedicatória de Brás, Bexiga e Barra Funda quando enumera os “novos mamelucos”: Francisco Mignone, Vicente Rao, Menotti del Picchia, Flamínio Fávaro, Alfredo Mario Guastini, Antonio Augusto Covello, Anita Malfatti, Sud Menucci, Conde Francisco Matarazzo Júnior, Francisco Pati, Mário Graciotti, Nicolau Naso, Victor Brecheret, Menotti Sainatti, Heribaldo Siciliano, Tereza di Marzo, Bianco Sparto Gambini, Italo Hugo e Lemmo Lemmi (este o popular caricaturista Voltolino, que costumava ilustrar as piadas de Juó Bananère, escritas em português macarrônico).
Alexandre Ribeiro Marcondes Machado, nome verdadeiro de Juó Benanère, originário também do Vale do Paraíba como Mazzaropi, realizou em sua obra o processo inverso: italianizou de forma grotescamente imaginária a linguagem do paulista: Eva, a premêra molhére,/ Tinha gara di macaca./ I u Hermeze da á Funzega/ Tê gara di urucubacca.
Embora nascido no teatro e no circo, o Jeca-Mazzaropi não se construiu mais com os exageros de Genésio Arruda quando se transpôs para o cinema. Este veículo, onde o “close” desfavorece o imaginário quando o argumento se volta claramente para o realismo, exige maior contenção intepretativa e visual, à qual Mazzaropi soube atender com habilidade. Havia no ator uma preocupação inteligente de preservar a empatia, com o público de defender a situação humana sem perder o resultado cômico. É nessa postura simples e simpática que ele vai permanecer na memória de nossa gente. Como alguém que deu a volta por cima de nossas infelizes estruturas sociais utilizando a arma pacífica de sua divertida matreirice.