A Hollywood caipira
Folha de S. Paulo 08 de junho de 1977No Largo do Paissandu, mulheres com estola de pele,
bandinha de música: a estréia do filme de Mazzaropi.
São duas mil pessoas, o trânsito está interrompido numa faixa da Avenida São João, o Largo Paissandu está agitado. Uma escola de samba, uma banda do interior as duas misturando batucada e marchinhas ao mesmo tempo. Motocicletas e viaturas do DSV, sirene, 5 soldados da PM e um sargento. Dois caminhões de uma estação de televisão, holofotes, fotógrafos. Então, com 45 minutos de atraso, o gálaxie preto estaciona junto à calçada do cine Art-Palácio, para a cerimônia de estréia do filme Jecão…um fofoqueiro no céu.
Gilda Valença, atriz e cantora portuguesa, é a primeira a descer. As pessoas pegam no seu braço, puxam seu vestido azul-turquesa, passam a mão em sua estola de pele, quase a derrubam de seus sapatos de salto. Ela não consegue caminhar, ainda mais manter a elegância no meio de tanta afobação. André Luis Toledo, um rapaz de olhos verdes que também trabalha no filme, vem por trás, tentando ajudar.
Gilda sobe o degrau e tropeça, não tem onde se encostar, ainda mais agora, quando todos estão agitados, dando pulos, gritando feito loucos porque ele, (“um caipirão que agrada,” segundo o fã baiano Abidinald Campos, alfaiate) está chegando, baixinho maquiado e enrugado, (“me dá duas horas tão alegres,” diz a telefonista Maria Guiomar Nóbrega, de Natal, RGN), e então os policiais começam a gritar um monte de ordens ao mesmo tempo, é como se ninguém mais estivesse com os pés no chão, (“a gente dá muita risada das palhaçadas que faz,” diz o cearense Simão Rodrigo de Moraes, balconista), e Amácio Mazzaropi, 62 anos de idade, 44 de carreira, 28 filmes, tenta sorrir para disfarçar o pavor.
Dá uma entrevista mas não consegue nem falar nem ouvir direito porque as pessoas continuam empurrando. Agora, cinco homens muito fortes ao redor, não deixam ninguém chegar perto, são os guarda-costas, além desses ainda tinha um guardinha dessas empresas particulares de segurança, que ficou brigando muito com o público, embora fizesse o possível para manter a educação, garantia a toda hora. Encolhido no meio de tanta gente forte, Mazzaropi vai para a sala da gerência, mais sossegada, pede para ficar alguns minutos sozinho para descansar. Fora, os guarda-costas não deixam ninguém entrar. Dentro, Mazzaropi vira-se para um dos ajudantes e pergunta:
– Qual é a programação?
Sentado no sofá, de plástico, sorrindo. O homem que desde segunda-feira está em 17 cinemas da cidade, mais dois em Mogi das Cruzes, um em Osasco, outro em São Caetano, Santo André, Ribeirão Pires e Campinas. Dentro de 6 meses, com a mesma fúria, começa a chegar em todas as cidades do Brasil, onde tem filmes passando até hoje, alguns com mais de 15 anos, como Chofer de Praça, o Jeca Tatu, a Tristeza do Jeca.
Dois milhões, 530 mil e 306 espectadores com um ano de exibição de Jeca Macumbeiro em 1975. (Para conseguir 200 mil a mais, Roberto Carlos precisou ficar três anos correndo… a 300 km por hora). Quase três vezes o público de Aeroporto 75, mais de seis vezes o público de Amarcord de Fellini. Dois por cento da população do Brasil em um único filme. Sentado no sofá, muito simpático, ele promete:
– Isso porque ainda não saiu a contabilidade de Jeca contra o Capeta. Deu mais ainda.
Jeca Macumbeiro, maior bilheteria nacional em 75: Cr$ 10,5 milhões
Jeca Macumbeiro: 10 milhões, 573 mil, 277 cruzeiros e 84 centavos. A maior renda do cinema nacional, em 75. Com os descontos, 50% da bilheteria para os exibidores, um lucro líquido de 3 milhões e meio de cruzeiros, mais ou menos. (“Seus filmes, em geral, não custam mais de um milhão e meio”, informa Gentil Rodrigues, coordenador da Produções Amácio Mazzaropi, a PAM Filmes, que produziu e distribuiu 21 de seus 28 filmes). Único proprietário da PAM, fundada em 59, para ficar com todos os lucros de seus caipiras, seus fantasmas e suas lingüiças, com filiais no Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Curitiba e Ribeirão Preto, Mazzaropi nunca se arriscou a investir em outro personagem – a não ser ele mesmo.
– Já recebi várias propostas para produzir filmes de outras pessoas. Mas, como nunca tive certeza de que haveria bom faturamento, não arrisquei.
Entre os filmes de maior renda, entre 70 e 75, Mazzaropi colocou mais quatro, além do campeão Macumbeiro; o Caipira em Bariloche, em 11º lugar; Portugal Minha Saudade, em 12º; o Grande Xerife, em 14º lugar; e Betão Ronca Ferro, em 17º. Total de público,13 milhões, 405 mil, 537 pessoas.
Total de renda: 42 milhões, 923 mil, 532 cruzeiros e 46 centavos. Vinte e três por cento da arrecadação total de filmes nacionais neste período. Ao lado de Gilda Valença e André Luis Toledo, o homem que controla um quinto do cinema nacional, que fica com 4% da bilheteria bruta (incluídas as produções estrangeiras) do país, fala um pouco de seu sucesso:
– Nunca tive qualquer prejuízo, desde meu primeiro filme até agora.
Tanto poder assusta um pouco aquele homem pequeno, cabelo esticado, na sala da gerência. (“A multidão me assusta. Sei que eles só querem me pegar, me abraçar, mas sempre pode acontecer alguma coisa e eu acabar me machucando”, diz). Tem o melhor equipamento do cinema nacional (“é que pode gravar com som direto”, diz a atriz Elizabeth Hartmann), mas gosta de passar muito tempo escondido em sua fazenda, perto de Taubaté. Os atores dizem que ele paga bem e em dia, que as acomodações que oferece são perfeitas, que seus filmes abrem um bom mercado de trabalho. Gilda Valença, que já fez três filmes com ele, a mulher que lançou a música Casa Portuguesa no Brasil, que trabalhou na novela Antonio Maria, faz questão de lembrar isso:
– Muitos atores que se iniciam com ele, logo conseguem uma grande popularidade. Por isso, um estreante tem sempre interesse em aparecer em filmes do Mazzaropi, pois terá uma imagem mais formada para futuros trabalhos.
No palco, antes da apresentação do filme vai contar algumas piadas. Como a história daquela moça que abaixou para pegar um lenço no chão, “e mostrou até a nuca”. Enquanto fala, funcionários da PAM estão distribuindo a letra de um samba-enredo chamado Mazzaropi, sua Arte e Sua Glória, feito por dois compositores de Taubaté. “E para o público cantar junto”, dizem os funcionários da PAM. Na sala da gerência, ele diz que não tem nenhuma receita fixa para seus filmes. “A história, que é o mais importante, vem de estalo”, diz. “Depois, é só planejar melhor. Ir montando o trabalho”.
A receita certa, porém, quem confirma é Gentil Rodrigues, nas duas salas num terceiro andar do Largo Paissandu, sede da PAM Filmes: “quantidade”. Por exemplo: até 1975, o preço médio por pessoa que assistia a seus filmes nunca passou dos 4 cruzeiros. Nunca se pagaria tão pouco num bairro metido a fino. Embora seus amigos gostem de dizer que ele não é amado só pelos pobres. Assim, além do futebol, Mazzaropi também estaria incluído entre as preferências do ex-presidente Médici: ainda no governo, seu serviço de relações públicas deu muita divulgação a uma sessão de Casinha Pequenina, feita em plena Guarujá do Riacho Fundo, especial para o general e a família.
No Paissandu, anteontem, até os hippies deixaram suas argolinhas e colares de lado para espiar a confusão – e ver se conseguiam entrar no cinema. A fila dobrava a esquina para a última sessão quando Mazzaropi estaria presente, para apresentar o elenco. Gentil esfregava as mãos: “Esse já emplacou. Pela primeira sessão já dá para sentir”. Às 20h40, sua mãe, cabelos todos brancos, estola de pele, porte de rainha, entrava pelo cinema. Pouco depois, quem chegava era Adolfo Cruz, que há 20 anos tem um programa sobre cinema numa rádio do Rio, há 10 na TV Tupi de lá. Orgulhoso autor do slogan ( “Falem mal mas falem do cinema nacional”), Adolfo Cruz se confessa um admirador de Mazzaropi, principalmente sob um aspecto:
– Ele sabe fazer um lançamento, sabe garantir a tranqüilidade no faturamento.
Cruz também fala de uma declaração de Austragésilo de Athayde, o presidente da Academia Brasileira de Letras. “Ele disse, certa vez, que considerava Mazzaropi um fiel intérprete de Monteiro Lobato”. Na sala da gerência, sem perder a calma, sem mostrar muita vaidade, mas bastante sincero, Mazzaropi contaria, pouco depois:
– Nunca estudei o Monteiro Lobato. Pela própria vida, conheço a figura do caipira tão bem quanto ele.
Aos domingos e feriados, ele é o Pirolito, palhaço e principal atração do Circo Guaraciaba, atualmente no Jardim Eulina em Campinas. Mas, durante a semana, o ator, cômico e palhaço Antonio Malhone faz os mais diversos papéis. Trabalha com Mazzaropi pela terceira vez e, pensando na dureza de manter um circo próprio, comenta:
– Aqui, o trabalho é uma fartura.
Na rua, três mulheres de biquini minúsculo e brilhante requebram sem parar, ao som da batucada dos Gaviões da Fiel. O guarda que passa por perto manda o pessoal se afastar, “que agora ninguém vai brincar com elas”. A banda que veio de Mogi das Cruzes continua firme nas marchinhas. Uma mulher colocou vestido de renda e chapéu de palha, como uma caipira, e dança, e pula, e fala sem parar. Pouco depois, na gerência, Mazzaropi diria:
– E você sabe que nós não fizemos nenhuma promoção da nossa presença aqui.
Só em São Paulo é que aparece no lançamento.
Uma chance única de ouvir e falar com ele. Não vai muito a cinema, nem a teatro. Gosta de viajar quando não está trabalhando, embora passe a maior parte do tempo muito ocupado. “Depois de lançado meu filme, fico aqui em São Paulo para ver como está sendo feita a distribuição”, garante. Filho de um dono de empório em Sorocaba, que depois veio para São Paulo, – saiu de casa aos 18 anos para acompanhar um faquir, Ferry. “No intervalo, contava umas piadas”.
Foi trabalhar com um faquir: contava piadas nos intervalos
Estudou até o ginásio, passou três anos fazendo pinturas, um dia abandonou o faquir e montou a Troupe Mazzaropi: dava pequenos shows depois das sessão de cinema. Nos anos 40, tinha um programa Rancho Alegre, na rádio Tupi, depois foi para a televisão. Em 52, a Vera Cruz o convidou para fazer Sai da Frente, o primeiro filme, o primeiro sucesso, um grande salário para a época: 25 mil cruzeiros por mês, mais 60 mil de gratificação. Já tinha feito, em teatro, algumas poucas peças: Deus lhe Pague, Anastácio e Era uma vez um vagabundo. “Foi observando aquele pessoal da Vera Cruz que eu aprendi as coisas que sei até hoje,” diz.
Em 55, vai para a Cinelândia Filmes: o contrato é para fazer dois filmes por ano, 300 mil cruzeiros por cada filme. Então, faz Lamparina, um filme que mexeu com a cidade: 250 mil pessoas viram a fita em 23 cinemas de São Paulo, só na primeira semana. Pouco depois, é que viria a idéia de montar a própria empresa:
– Então, eu já tinha experiência, sabia que não iria fracassar.
Em 59, Chico Fumaça, a história de um sujeito distraído que acabava virando herói nacional ao evitar o desastre de um trem, acaba lhe valendo um processo: um tal de Lázaro Adorno, que anos antes havia feito façanha semelhante – só que num trilho de trem mesmo, não diante de uma câmara de filmar -, sentiu-se ridicularizado com a fita. Mazzaropi não tinha culpa: se o governo prometeu pagar o estudo dos filhos do Lázaro, se a Estrada de Ferro lhe prometera passagens de graça, mas no fim das contas só lhe deram uma medalha da Ordem Nacional do Mérito, não era ele quem iria arcar com as conseqüências. E foi absolvido: Lázaro queria uma indenização de 500 mil cruzeiros, e nada recebeu.
No Cine Art-Palácio, a apresentadora anuncia os atores, a maquiladora, toda equipe. Mazzaropi está na porta da gerência, ouvindo tudo em silêncio. Depois de um leve suspense para contar um resumo de sua vida, é chamado. Então, arregala os olhos outra vez, sobe a escada e, bastante encolhido no meio dos guarda-costas, passa no meio do público e sobe ao palco para dançar, cantar, contar algumas piadas e falar sobre o filme que vai acrescentar alguns milhões a mais em sua fortuna.