A alma caipira do cinema que deu certo
O Estado de S. Paulo, Caderno 2, quinta-feira, 13 de junho de 1991.Jairo Ferreira
Dez anos após sua morte, o cineasta Amácio Mazzaropi personifica uma fase de ouro da produção comercial que soube investir num dos raros filões bem-sucedidos no cinema nacional
Falar bem ou mal do cineasta brasileiro Amácio “Jeca” Mazzaropi (1912-1981), dez anos depois de sua morte, não é uma atitude brega nem chique – nem soft. Falar desse Jeca é contar um pouco a história do cinema brasileiro.
Sacar que a Companhia Cinematográfica Vera Cruz, fundada nos anos 50, poderia ter sido uma espécie de Hollywood brasileira é lance Jeca? Nem tanto. Depois do fracasso de bilheteria do primeiro filme do “elefante branco”, Caiçara (1950), seu guru Alberto Cavalcanti (1897-1982) aliou-se imediatamente a Abílio Pereira de Almeida (1906-1977), prestigiado dramaturgo do TBC a quem coube a glória inglória de lançar Mazzaropi no cinema nacional: Sai da Frente (1951), consta, é a estréia brilhante do ainda não-Jeca no cinema daquela época, hoje vista como Idade de Ouro.
Não será exagero, em revisita, dizer que Mazzaropi é a essência da alma cabocla de um cinema em busca de sua identidade. Esse Jeca é um dos três melhores personagens de toda a trajetória de “nosso” cinema, ao lado de Zé do Caixão, criado por José Mojica Marins em 1964, e de Antônio das Mortes (Deus e o Diabo na Terra do Sol) de Glauber Rocha. São três gêneros aparentemente diferentes: “country” (Jeca no interior de São Paulo, mas por extensão aplicável a outras regiões do País), “nordestern” e “horror”. Mojica foi visto por Glauber como “o único gênio do cinema brasileiro”. Mazzaropi foi totalmente ignorado por Glauber Rocha e por quase toda a crítica dita “especializada”. O que não passou de ignorância, pretensamente elitista. Não é difícil entender esse revertério: pululam hoje diversas teses de nível acadêmico, tentando provar o óbvio da importância da incultura como cultura e todas em cima do lance naif do Jeca.
Se a moda pega, cult agora é Mazzaropi. Pobre Mazza, solteirão a vida inteira, começando como obscuro ator circense, desde 1946 radioator no programa Rancho Alegre. Fez questão a vida inteira de ignorar a crítica, sem contar que nunca leu nem mesmo Monteiro Lobato. Criou intuitivamente o seu personagem Jeca, sendo ele mesmo um Jecão, um chefão caboclo. Imaginem que ele fez questão de ignorar a existência do Conselho Nacional de Cinema (Concine). Não aparecia nas rodas de cineastas jamais, só curtia seu homossexualismo à distância, acionando um esquema de fiscalização das bilheterias artesanalmente.
“Mazzaropi detestava esse papo de leis de obrigatoriedade de exibição de filmes brasileiros. Tinha horror de interferência do Estado em sua empresa. Ele sabia que tinha seu público cativo: só aparecia em público, nos últimos anos, quando um filme seu era lançado no centro da cidade. Foi um homem riquíssimo, porque tinha seus próprios fiscais, que ficavam ao lado da bilheteria ‘cronometrando’ a quantidade de gente que entrava. Só assim ele podia provar aos distribuidores que seus filmes eram vistos em média por dois milhões de espectadores e não engolir os relatórios oficiais”, conta Pio Zamuner, fotógrafo e iluminador (leia-se: diretor) de seus filmes mais rendosos.
Não é difícil deduzir (Mazzaropi praticamente nunca deu entrevista, à moda Hollywood/Vera Cruz) que o Jeca deve ter aprendido alguma coisa com a experiência industrial da Vera Cruz. “Outro dia fui assistir Candinho do Mazzaropi, uma produção da Vera Cruz, dirigida pelo Abílio Pereira de Almeida. “Fui num sábado no Cine Cairo. Entrei numa fila imensa, para meu prazer, muito maior que a fila do Cidadão Kane. Um público eventualmente diferente daquele do Cidadão Kane, um público simpático e que me interessa muito. Fiquei pensando, pena que a Vera Cruz descobriu Mazzaropi e o cangaço tarde demais”, declarou à Revista Cinegrafia, em 1974 Paulo Emílio Salles Gomes, fundador da Cinemateca Brasileira, morto em 1977.
De resto só a memória. E a minha não é das mais benevolentes, embora tenha visto praticamente todos os filmes de Mazzaropi. Ele criou a PAM Filmes em Taubaté, o maior espaço nacional já imaginado e realizado por um investidor privado na área de cinema. Como esse Jeca não foi nada visionário, o resultado de sua obra idiota redundou simplesmente num leilão Mazza ocorrido em setembro de 1984 no Teatro Zaccaro e que foi um dos espetáculos menos mazzaropianos imagináveis.
Tudo o que restava do sonho Vera Cruz/Mazzaropi foi leiloado. Talvez seja bom assim. De Mazzaropi só restou o ícone Jeca.